quinta-feira, 24 de março de 2016

Semana Santa


"Na quaresma, todas as quartas e sextas rezava-se a solenemente a Via Sacra, toda cantada. Os corações iam, aos poucos, sendo recolhidos para o grande retiro
coletivo da Semana Santa.

Quando o domingo de Ramos chegava, a cidade estava cheia. Muitas pessoas que residiam nas fazendas, nos sítios, alugavam casas na cidade para participar efetivamente das liturgias que todos os anos contavam com grande número de sacerdotes que vinham às vezes de longe, e pregavam com grande entusiasmo os mistérios da fé.

Era realmente um retiro coletivo. As pessoas eram incentivadas à ascese através de cerimônias e ritos que elevavam o espírito através de grandes manifestações artísticas como a oratória, feita por pregadores de grande cultura versados em latim e grego e doutos em filosofia e teologia, o canto orfeônico , com cânticos específicos para cada cerimônia, artes cênicas representando a Paixão de Cristo e…banda de música! (Qualquer criança que demonstrasse afinidade e dom podia aprender a tocar um instrumento na Corporação Musical Santa Cecília. Com o passar do tempo bem aproveitado, adquiria destreza e passava a fazer parte da corporação como músico e professor dos novatos.)

Era interessante ver as multidões acompanhando as procissões da Semana Santa em São Manoel. Milhares de corações, unidos, formando um só. Ou, um enorme cordão umbilical onde cada um era importante para facilitar ao outro a interação com Deus. Todos ali estavam sintonizados no mesmo espírito: manifestar publicamente sua fé e, ao mesmo tempo, recordar as verdades que aprenderam de seus antepassados . 

Nessas solenes procissões levavam, pelas ruas, as grandes imagens de Nossa Senhora das Dores, do Senhor dos Passos e a do Senhor Morto. As do Senhor dos Passos e a de Nossa Senhora das Dores eram santos-de-roca, ou seja, tinham apenas rosto, mãos e pés bem esculpidos em madeira em tamanho maior do que o natural. O corpo, desse tipo de imagem, é apenas uma armação de madeira que, quando vestida de roupas de tecidos e usando perucas feitas com cabelos humanos se transformavam nas imagens que faziam parte do acervo da memória do povo de São Manoel. Memória classificada entre as emocionalmente importantes, chegando a ser coadjuvante na definição da identidade de cada um como indivíduo, no meio do seu povo. 

Eram obras de um artista do século XIX que colocou sua arte a serviço dos sentidos dos irmãos. Para que seus olhos, vendo aquelas imagens, se lembrassem dos protagonistas da história real da sua gente e, tivessem assim seus mais dignos sentimentos aflorados. Pelos sentidos, aproximar de Deus. O escultor viveu há muitos anos; há quanto tempo foi embora e, no entanto,continuava presente no meio do seu povo porque deixara serviços prestados maiores e mais importantes do que ele pessoalmente: as imagens que entalhou e que se tornaram instrumentos de Deus para unir gerações em torno de Si, durante as comemorações da Semana Santa. Tempo de lembrar de que cada pessoa do povo era muito mais importante para Deus do que poderia imaginar.

As pessoas da cidade consideravam que acompanhar uma procissão fazia um bem enorme. O coração ficava leve. Lá no fundo, cada pessoa sentia que aquele familiar que a amava realmente, e que já não se encontrava mais presente, ficaria feliz se a visse acompanhando aquela procissão. Estava em harmonia com seus antepassados. Sentia forte a marca de sua identidade, como pessoa, e depois como povo. Procissão fortalecia.

O povo de São Manoel gozava, nesse tempo, de grande simplicidade; as pessoas eram naturalmente alegres, mesmo que em cada casa houvesse algum tipo de dor. Porque todas as suas dores recebiam orações como um remédio que era incluído em todos os tratamentos. Quantas vezes, a cidade inteira rezou por determinada pessoa que corria sério risco? Havia entre elas uma cumplicidade aconchegante."

- Trecho do livro Utopia sob Incursão -


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