Neste artigo, João Pereira Coutinho conta sobre pesquisador Português Jorge Martins Ribeiro que reivindica para os homens o direito de rejeitar a paternidade, evocando o direito da mulher ( em seu país) de realizar o aborto.
O texto ilustra com o exemplo, o perigo que se corre ao abandonando
os preceitos sagrados da espécie humana para correr atrás da
satisfação pessoal. Onde iremos parar?
"Eis, no fundo, a beleza da "autonomia" progressista: todos sabemos
como ela começa; ninguém sabe como ela acaba."
Filhos da mãe
Aborto. A minha semana foi
dominada por ele. Nos Estados Unidos, o republicano Todd Akin fez estragos
na campanha de Mitt Romney com uma afirmação miserável sobre o tema:
quando há violação, o corpo da mulher tem maneiras de resolver isso, rejeitando
a gravidez.
A miséria da
frase não está no delírio acientífico do homem, nem sequer na sua
recusa do aborto em casos de violação --uma posição tradicionalista, sim,
que é possível entender (não por mim) e até respeitar (idem).
A verdadeira miséria está na
defesa explícita de que há violações e violações. Se a violação é
verdadeira, o corpo da mulher é uma espécie de nave espacial que se desvia dos
meteoritos, impedindo que o espermatozoide faça a sua aterragem triunfal
em solo ovular.
Se, pelo contrário, a violação é
ambígua, ou "amigável", como sacrificar a vida de um inocente?Sobretudo
quando esse inocente é o produto de uma violação-que-não-é-bem-uma-violação?
Já escrevi nesta Folha.
Repito: sou contra a liberalização do aborto, exceto quando está em causa a
saúde física e psíquica da mãe.E imagino que uma mulher violada --a sério ou a
brincar-- não fica propriamente no seu melhor estado anímico. As
palavras de Todd Akin são, por isso, duplamente aberrantes.
Mas o aborto, e a minha semana
a pensar no assunto, não veio dos Estados Unidos. Veio de Portugal. Na
imprensa lusitana, encontro notícia séria que merece reflexão séria: um
pesquisador português, Jorge Martins Ribeiro, escreveu um estudo universitário sobre a
paternidade.
Melhor: defendendo a possibilidade de um homem não
reconhecer a paternidade de um filho nascido contra a sua vontade. O pesquisador português baseia-se na mais pura igualdade entre gêneros. E invoca a liberalização do aborto no país (desde 2007) em socorro das suas teses: se, em Portugal, a mulher pode decidir abortar
até as dez semanas de gestação, independentemente da posição do homem
sobre o assunto, por que motivo o homem não pode recusar a paternidade
de uma criança?
O raciocínio de Martins Ribeiro é exemplar --e exemplar porque parte da mesma noção de "autonomia"
que está no centro das discussões progressistas sobre
o aborto.
É a mulher grávida quem decide o
que fazer com a criança. Sempre. A opinião do homem; os seus
interesses; o desejo (ou não) de ser pai --tudo isso tem importância, digamos,
conjugal ou sentimental.Mas nada disso determina o fim do processo. Porque
a "autonomia" da mulher é sempre soberana.
Nenhum homem pode obrigar uma
mulher a abortar.
No esquema geral das coisas, o homem não
passa de um doador de esperma que, depois do serviço, é atirado para as
bordas do prato, assistindo a um filme onde ele será apenas ator coadjuvante.
Como? Perfilhando (obrigatoriamente)
a criança e sustentando-a, caso a mãe decida tê-la.
O pesquisador Jorge Martins Ribeiro, com impressionante
sensibilidade paritária, inverte as premissas tradicionais do debate e conclui: se um homem não pode obrigar a
mulher a abortar, não pode também ser obrigado pela mulher a perfilhar uma
criança que ele não desejou.
E mais: nem a autoridade do
Estado pode invadir essa esfera de "autonomia" (masculina). O
Estado não pode determinar que uma mulher aborte uma criança.
Como pode desencadear uma
averiguação oficiosa de paternidade?
Se o pai não quer ser pai, o
filho será, literalmente, filho da mãe.
Claro que, no meio do debate,
algumas consciências progressistas acabarão
por apelar para "os
superiores interesses da criança".
Curioso: quando é para abortar,
não há "superiores interesses da criança"; quando o homem ameaça
fazer as malas, a criança passa a ter "superiores interesses".
Nada disso perturba o raciocínio
do nosso pesquisador. "Superiores interesses da criança"?
Diz ele: um sistema que já acomoda o aborto livre até as dez
semanas pode perfeitamente conviver com filhos sem atribuição da filiação
paterna.
Eis, no fundo, a beleza da
"autonomia" progressista: todos sabemos
como ela começa; ninguém sabe
como ela acaba.
João Pereira Coutinho,
escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio
da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no
livro "Avenida Paulista" ( editora Record). Escreve às terças-feiras
na versão impressa do caderno Ilustrada do jornal "Folha de São
Paulo", e a cada duas semanas nos site do jornal.