domingo, 15 de maio de 2011

O Homem em perigo

          
            Prefácio do livro: Construir o Homem e o Mundo,
              de Michel Quoist – Livraria Duas Cidades- 1987

 Em face da consciência da humanidade, os chamados grandes problemas – a injusta condição do mundo operário e o proletariado nos povos subdesenvolvidos – permanecem ainda sem solução. Seus amargos frutos e as inúmeras variedades de sofrimento que acarretam, atingem o homem em sua carne e sua alma.
         
Hoje, entretanto, um outro mal, talvez mais grave ainda, porque mais profundo, vai invadindo a humanidade, a começar – terrível reviravolta das coisas – pelos povos mais evoluídos, e pelos homens mais civilizados. É uma espécie de desintegração, de decomposição, de apodrecimento do próprio homem. Os maiores sábios e mais eminentes moralistas (pelo menos entre os que creem na primazia do espírito sobre a matéria) acham-se unanimemente inquietos, e a própria humanidade já começa a compreender a importância desse perigo.
         
Por suas extraordinárias realizações, o mundo moderno é prodigiosamente grande e belo. O homem, orgulhoso de seu poder sobre a matéria e sobre a vida, parece dominá-las cada dia melhor. Ora, na medida em que pela ciência e pela técnica o homem vai se apoderando do universo, vai também perdendo o domínio do seu universo interior.

À medida que penetra no  mistério dos mundos, tanto dos infinitamente grandes como dos infinitamente pequenos, perde-se nos próprios mistérios. Pretende dirigir o universo e não sabe dirigir a si mesmo. Domestica a matéria, mas, quando – libertado da sua tirania – deveria viver mais intensamente do espírito, a matéria aperfeiçoada volta-se contra ele. E eis que ele se torna seu escravo, e é o espírito que agora agoniza. . .
         
Se o homem vier a perder o espírito, perderá tudo. Sem a primazia do espírito não haverá mais homem. É porque a ideia nasce do espírito que a matéria se organiza sob a mão do homem e a sua construção prossegue através dos tempos. É porque o espírito engendra o plano, que a cidade surge na terra e a máquina sai da fábrica. É porque o espírito concebe a beleza que o mármore se torna estátua, que as cordas cantam, que as cores se harmonizam. E é porque o espírito voa ao encontro de outro espírito, que palpita o amor, que os homens se unem e a humanidade cresce. Mas quando o espírito se deteriora, o homem corre perigo, pois, a carne de seu amor, máquina que construiu, a cidade que ergueu, o mundo que edificou lhe escapa, e nem há mais homem. Tudo tem que ser feito. . .
         
Assim, umas após outras, caíram as civilizações. E, sabemos que, de todas as que se sucederam desde o início da história, muito poucas sucumbiram a golpes exteriores, tendo a maior parte delas sido o seu próprio carrasco, minadas interiormente por um lento apodrecimento.
         
Todos nós nos orgulhamos de nossa civilização ocidental. E foi para salvá-la que participamos da maior matança que o mundo jamais conheceu, foi para que vivesse que dezenas de milhões de homens morreram, e que outras dezenas de milhões sofreram atrozmente; e é para salvarguardá-la que agora as nações se armam e a cada dia armazenam forças prodigiosas, capazes de devastar continentes inteiros.
         
Sem dúvida, nossa civilização está em perigo, mas, não tanto em suas fronteiras geográficas, como nas próprias fronteiras do coração humano. O verme que corrói está em seu interior, e se fortifica, inexoravelmente, alimentado pelas facilidades do mundo moderno que oferecem ao corpo as delícias e ao espírito o orgulho e o poder.
         
E agora estamos recolhendo seus frutos, cujo sinal, entre outros é uma moralidade deficiente, causadora de uma delinquência juvenil aumentando perigosamente no mundo: no seio dos países “desenvolvidos”ela adquire proporções de um verdadeiro flagelo.
         
O crescente progresso das doenças mentais, dos desequilíbrios de todas as espécies, oferecem-nos uma trágica ficha de saúde do homem moderno: os “selvagens” precisam de médicos para seus corpos, mas os homens “civilizados” necessitam de um exército cada vez maior de psicanalistas e psiquiatras para salvar-lhes os espírito.
         
Talvez amanhã o homem venha a visitar os planetas. Mas, qual será o “conteúdo” desse homem?
         
Seria preciso que a humanidade inteira ouvisse a solene e eternamente atual advertência de Cristo: “De que serve ao homem ganhar o Universo se vem a perder sua alma?”

         
Entretanto, o mundo moderno é extraordinário, e não apenas não temos o direito de frear seu fulgurante progresso, como temos o dever de trabalhar para esse progresso, em vez de nos evadirmos dele. Entretanto, nosso labor seria vão, se paralelamente não trabalhássemos para devolver ao homem a consciência de sua alma. É preciso refazer o homem, para que o universo – por ele – seja refeito na ordem e no amor.
         
Quanto maiores forem as facilidades de viver e de gozar, mais necessidades de luz terá o homem para compreender que não são senão meios para atingir um fim mais alto; mais precisará de força interior para não se apegar a elas, mais necessidade de amor terá a fim de não capitalizá-las em seu próprio benefício, e em detrimento de seus irmãos. Por outro lado, da mesma forma que, à medida que uma construção progride, reclama do engenheiro cálculos mais precisos, mão mais segura, assim também, para que o homem possa edificar mais solidamente o mundo que vai crescendo, deve animá-lo cada vez mais de espírito e  de amor.
         
Para que se refaçam a humanidade e o Universo, já não basta mais devolver ao homem a sua alma; será preciso oferecer-lhe “suplemento de alma” há tantos preconizados por Bergson.

Ainda mais: se o espírito do homem soçobra em face da matéria triunfante, é porque esquece , ignora ou nega a Deus. Assim o seu drama se reduz a isto: ou o homem se entrega a Deus, desprezando a matéria, ou escolhe a matéria, recusando a Deus. De onde se deduz que, se ele está em perigo, é porque escolheu a si mesmo e a matéria.
         
O mundo moderno é para si mesmo uma permanente.
         
O homem produz cada vez mais e, perpétuo esfomeado, lança-se sobre esses bens sem nunca se sentir saciado. Infernal círculo vicioso, onde as necessidades crescem mais depressa do que nascem as coisas, e onde o homem escravo debruça-se para colher os frutos da matéria, e acaba por cair de joelhos diante desse novo ídolo. E ei-lo dilacerado em seu ser profundo, condenado à luta contra seus irmãos e – quer se trate de indivíduos ou coletividades – procurando cada qual o máximo para si próprio.
         
Apesar da sua decadência, o homem admira-se a si mesmo. E admirando-se esquece de admirar a Deus e adorá-lo. Enquanto cresce seu extraordinário poder sobre as coisas, esquece a onipotência de Deus, faz das coisas seu deus, usa-se a si mesmo no lugar de Deus.
         
O homem “civilizado” separou-se de Deus, e apesar de suas grandes declarações, pela elaboração de suas doutrinas agnósticas constrói um mundo onde não há mais lugar para Deus.
         
A solução de Cristo, enviado à terra por seu Pai para salvar o homem, hoje, como sempre, está à nossa espera:
         
Eu sou o caminho, a verdade, a vida. . .
         
Sem mim nada podeis fazer. . .
         
Vim para que tenham a vida e atenham em abundância. . .
         
Eu sou a ressurreição e a vida. O homem que vive e crê em mim não morrerá.
         
Deixo-vos minha paz, dou-vos minha paz, e eu não vo-la dou como a o mundo. . .
        
Para construir o homem e mundo moderno, não é preciso apenas restituir ao homem sua alma, nem dar-lhe um suplemento de alma, mas também, e principalmente, fazê-lo redescobrir o Cristo. Senão amanhã não haverá mais homem. O homem está em perigo.

         
Redigimos estas páginas (do livro: Construir o homem e o Mundo) porque consideramos real e cada dia mais urgente esse perigo que ameaça e atinge o homem. Nossa ambição é ajudar os jovens a refletir, voltando à plena posse de si mesmos para, em seguida, se fortificarem espiritualmente. Minúsculo esforço diante da imensidão do trabalho a ser realizado! Mas a imensidade de uma barragem não é constituída por inumeráveis gotas de água?

Deus, a quem confiamos este livro, saberá servir-se dele se assim o desejar, e se lhe formos dóceis.

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