quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Os últimos momentos do Governo João Goulart



                  Aceleram-se os acontecimentos depois do comício na Central do Brasil, no dia 13 de março. Lembro-me bem, e gostaria de que todos rememorassem aquela tarde sinistra. Sentíamos uma ameaça pesada e próxima. Dir-se-ia  que até no céu carregado se viam prenúncio de desgraça. Estavam ali reunidos os possessos que desejavam reduzir o Brasil a um presídio de  oitenta milhões de detentos. Os rádios, histericamente, transmitiam notícias, nomes, frases. Um matutino compusera sua primeira manchete com o novo titular: O COMISSÁRIO DO POVO... 

O agrupamento popular relativamente pouco numeroso, que cercava o palanque, procurava compensar sua tenuidade com multiplicação de gritos e de gestos. Um padre ( de batina) pulava quase um metro de altura cada vez que seu sistema nervoso era percorrido pelas descargas vindas dos slogans. E o povo? O povo que a UNE chamava de antipovo, olhava com medo e repugnância a desordem crescente. Greve todos os dias. 
         

        Naquela tarde sombria e lívida com contraste de tempestade e bonança, havia falta de luz. Racionamento da Ligth. ( Esse racionamento da Ligth em 64 foi uma das obras das antimetas de Juscelino Kubistchek; em seu governo a Ligth empreendera a construção da Usina de Ponte Coberta, que iria trazer mais 100.000 kW para o Rio. O empreendimento tinha financiamento estrangeiro, mas precisava de um aval do governo brasileiro e, portanto, de uma assinatura do Presidente. Duas vezes teve a empresa de dispensar seus trabalhadores para reatualizar os orçamentos, porque o Presidente Juscelino, com uma omissão criminosa, deixava de assinar seu compromisso. Durante um ano andavam os homens da empresa a procurar o Presidente, sem conseguir seu rabisco, que ativaria uma enorme construção e que traria luz e conforto a quatro milhões de cariocas.)
          

       Em nosso bairro as ruas estavam vazias, e nos rebordos das janelas víamos durante todo o dia velas acesas em sinal de que naquele apartamento rezava-se pedindo a Deus que não permitisse o assassinato do Brasil. Creio que foi nesta semana que um colunista católico escreveu que as reformas anunciadas por Goulart coincidiam com os ensinamentos de João XXIII!

       

     Precipitavam-se os acontecimentos. Foi nesta última semana ou na anterior?  Cada manhã, à saída da missa, os amigos se entreolhavam com o ar de quem tem em casa um grande doente. Evitávamos falar no assunto. Nesta manhã, porém, alguém perguntou:
-Viram o que aconteceu ontem na Ilha do Fundão?
O Presidente Goulart aprazara encontro com o Reitor, professores e estudantes. Desceu de helicóptero, mas  a meia altura mandou parar e começou a gritar:
- Os estudantes para a frente! Os estudantes para a frente!

        E a manada de estudantes rompeu a socos e empurrões a fila dos professores. E nós, ouvindo a história, sentíamos uma vergonha profunda, alternada com convulsões de cólera perdida. Ah! que vontade de combater! “O rage, o desespoir, o viellesse ennemie!” ( ô ódio, ô desespero, ô velhice inimiga!)
     

       Cada notícia era uma injúria; cada página de jornal, uma bofetada. E os nervos tensos, e o coração sangrando ... Não se via uma perspetiva, uma saída. A ténue esperança que tínhamos era de que o Exército se organizasse e seus chefes soubessem sobrepor a lei natural à mesquinha legalidade produzida pelo positivismo jurídico. Saberiam? Poderiam? O fato é que o comunismo já se achava no Poder e já tinha  a seu favor a moleza de uma sociedade maltratada por tantos e tão maus governos. Faltava-lhes um arremate de forma, mas contava com a grande imprensa, com os "intelectuais”, com os estudantes e com padres e até arcebispos “progressitas”que já ensaiavam a voz para a declaração:
-Companheiros! Eu também sou comunista! Eu sempre fui comunista!
         

       De onde nos viria o socorro humano, a reação viável? Trouxeram-me um revólver.  Que faria eu com um revólver contra um bando de executores que me cercassem a casa à noite? Aconselharam-me a mudar de posição  a mesa de trabalho colocada diante da janela. Cheguei a pegar na mesa, mas detive-me, prevendo que entraria numa espiral de precauções intoleráveis se admitisse a primeira. 

Aconselharam-me  a mudar de casa, mas o mesmo horror da organização do medo me tolheu. Sinceramente, a um Brasil emporcalhado de marxismo, eu preferiria  não sobreviver. Dias depois, fui dar minha aula na Companhia Telefônica, na Avenida Presidente Vargas. Quando cheguei ao local, vi-me cercado no carro por uns oito ou dez indivíduos de má catadura: 
- O que vem fazer aqui?
-Vim dar uma aula - respondi com uma repugnância infinita.
-Somos o piquete da greve! Você não sabe que a CTB está em greve?
        

       Senti oscilar a razão sob a pressão de uma cólera explosiva. Tive medo e raiva de ter medo. Consegui conter-me: engrenei o carro, baixei a cabeça para evitar algum tiro, e entre gritos dos pelegos e freadas dos carros entrei na roleta russa da Avenida Presidente Vargas. No dia seguinte, li no jornal o que o mesmo piquete fizera com uma moça datilógrafa que ousara discutir com eles. Despiram-na e deixaram-na nua junto de uma palmeira.
         

         Os possessos! Os possessos! Tínhamos a impressão de que o número deles crescia , ou que se multiplicava sua força. E pasmávamos diante da inexplicável insensibilidade de alguns intelectuais e de muitos padres e bispos que não sentiam o cheiro da substância que lhes entrava pelo nariz. Empoleirados em esquemas, obnubilados pelo amor-próprio, ou compelidos a rotular com louvores o hediondo fenômeno que os empurrava, esses intelectuais e esses padres ousaram apontar no comuno-peleguismo, cruel e cafajeste, uma realização da doutrina social da ... Igreja.
      

         Não víamos saída, sobretudo quando comparávamos nossa situação à dos países tombados sob o jugo do comunismo. Os processos se repetiam. “Vejam o caso da Tchecoslováquia!”, dizia-nos um comentador de política internacional. Eu acordava resmungando, não sei por que em francês: “sans issue”... sans issue..."( sem esperança, sem esperança). Receávamos todos que nossas próprias lições na resistência democrática se tornassem obstáculos mentais, superstições, pontos de honra de nossos melhores soldados: democracia , vontade do povo, legalidade ... Receávamos que tudo isso recobrisse a noção fundamental de comum e de lei natural e paralisasse as melhores consciências.
        

        De Minas chegou a notícia consoladora de um comício pelego-comunista  dissolvido por um grupo de senhoras armadas com o terço. Mas a anarquia se precipitava. O grupo de marinheiros rebeldes  reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos, venceu a resistência do próprio Governo. O Almirante Aragão voltou ao comando dos fuzileiros, e nesta tarde o povo carioca teve que suportar o vexame da carnavalesca passeata dos comandados do Cabo Anselmo na Avenida Rio Branco. De hora em hora arrematava-se  a chinificação do Brasil. O Clube Naval esboçou uma resistência que obrigou o Presidente Goulart a voltar à ofensiva no tristemente famoso discurso no Automóvel Clube. Nesta noite o Brasil chegou ao ponto mais baixo de sua história, começou um discurso bobo  e convencional, e pela força do hábito deixou escapar a palavra “disciplina”. Foi estrondosamente vaiado.

     Naquela manhã, à saída da missa, percebemos logo que a anormalidade chegara a um ponto decisivo. Antes mesmo de ver os lenços azuis, sentimos o ar de um dia diferente. O que faziam ali aqueles rapazes de lenço azul e revólver na cinta? Eram milicianos. O quê se esperava? Um ataque ao  Palácio  do Governador da Guanabara.
     

         Esboçavam-se filas diante dos armazéns. A cidade inteira -adivinhávamos- se preparava e se retesava. Caminhamos na direção do Palácio e encontramos amigos, homens pacíficos, negociantes e professores, que se dirigiam também ao Palácio, com um revólver surgido na cinta que jamais sonhara tamanha responsabilidade. O brasileiro bom, o brasileiro sem jeito, modesto, caminhava mansamente e sem ares de heroísmo para numa situação em que possivelmente teria de dar a vida. Povo manso, povo bom, pensava eu, mas também povo bobo  e sem jeito. O que iria acontecer?
  Numa esquina ouvi uma conversa entre dois populares:
- Parece que os tanques vão atacar o Palácio pela Rua Paissandu.
-Não pode. Ô  cara, você não sabe que é contra-mão? 
    

           Perto  do Palácio adensava-se a multidão, mas no meio dos homens canhestramente dispostos a dar a vida pela Pátria passavam meninos de bicicleta e moças risonhas e despreocupadas. Seria da mocidade, desta bateria nova e bem carregada, que eles tiram tamanha energia? Não. O povo todo, observando melhor, ostentava uma graciosa e leve coragem. Uma coragem humorística. E eu tive, de repente, a intuição viva e fulgurante da vitória desse gênio brasileiro contra a substância que o ameaçava.
     

            Pouco depois chegou a primeira onda de notícias surpreendentes: os tanques tinham aderido ao Governador, as Forças Armadas dominavam a situação, João Goulart fugira do Palácio das Laranjeiras, sem tempo de meter a fralda da camisa para dentro das calças. Pouco depois confirmava-se a notícia, e o povo brasileiro ( com exceção dos intelectuais de esquerda e dos eclesiásticos paracomunistas) ficou sabendo que Nossa Senhora ouvira nossas súplicas, que Deus nos salvara e que o instrumento escolhido para este milagre fora o nosso bom soldado de terra, mar e ar.

            Dois dias depois, em todas as cidades grandes do Brasil, o povo encheu as ruas com a Marcha da Família - com Deus, pela Liberdade. Eu e quatro amigos estivemos perdidos, imersos na mais densa multidão que jamais víramos reunida. E eu então senti-me possuído de uma enorme admiração por esse povo singular que acabava de vencer a Copa do Mundo no combate ao comunismo. Agradecendo a Deus os favores de exceção que de certo modo não merecíamos, agradecia também os favores da natureza e das merecidas consequências. 

Grande povo! “A Europa curvou-se ante o Brasil nos dias de Santos Dumont. Menino de quatro anos, cantei o pequeno hino  de  nossa projeção internacional. Velho, às portas dos setenta, cantava outro hino e candidamente prelibava a admiração universal diante da facilidade dançarina, graciosa, dionisíaca, com que o povo brasileiro fez correr os comunistas. ( Mal sabia da embriagues de meu entusiasmo, que o mundo inteiro nos caluniaria. Os Estados Unidos com base na superstição de sua liberal democracia, ou no seu “democratismo”, e a Europa com base no esquerdismo que se apoderou dos meios de comunicação.) 

           Foi um dos mais belos espetáculos que já vi. E tenho pena dos corações alienados que não tiveram a capacidade para acolher tão boa e bela alegria.Lembrei-me de uma página de Léon Bloy. A França acabara de marcar a vitória do Mame. Os jornais estavam encharcados de júbilo, de esperança de triunfo. Mas Léon Bloy folheava os jornais com cólera crescente, e depois com tristeza infinita. O que é que o velho leão procurava nos cantos dos jornais? Lá estava escrito em seu Diário: “Je cherche en vain le nom de Dieu” ( eu procuro em vão o nome de Deus).
                         

                           
          Ora, em nossa grande Marcha - cuja fotografia está diante de mim - não houve menção de um só nome dos tantos civis e militares que bem mereceram o aplauso do povo. Havia só um nome: o nome de Deus.

Gustavo Corção Parte da introdução do seu livro “ O Século do Nada”- Editora Record 








Nenhum comentário:

Postar um comentário