sexta-feira, 25 de julho de 2014

São Tiago Matamoros e as guerras santas, ontem e hoje.









  A  imagem de São Tiago Matamoros, que horroriza muitas pessoas na Catedral de Compostela, na Espanha, é um retrato da alma humana, que é cenário de batalhas violentas.  Os efeitos dessas batalhas repercutem na vida material,  e podem  chegar até  a promover  derramamento do sangue biológico.  Tudo acontece naturalmente, a dor do conhecimento de fatos dolorosos impele à luta em defesa do que sofre. Primeiro acontecem as condenações, a artilharia verbal que pode ofender atingindo o  sagrado alheio. Daí à agressão física é só um passo. A razão se perde, e fica somente o sentimento de aversão que causou a dor, aparentemente justificando a violência. Loucura. Não apenas parece ser, é loucura, profundamente humana.

É da natureza, o instinto de autopreservação.  O desprezo da vida biológica é sinal de anomalia, uma anormalidade, que pode ser doença emocional ou santidade, que é o  interesse pelos valores espirituais a tal ponto de desprezar os prazeres da vida biológica por viver a cultivar os do espírito, que sabe ser imortal.

A vida humana é considerada especial em relação aos outros tipos de vida porque o humanos têm características que os permitem escolher e determinar os acontecimentos que compõem a sua própria existência. 

A história da humanidade confirma que os humanos nascem em comunidades, cujos valores e paradigmas são passados de geração em geração, de maneira que o conjunto deles determina a identidade de um povo ou etnia. 

Fora do seu habitat natural um ser humano padece mais do que normalmente sofrem os outros animais. Ele tem necessidades emocionais e intelectuais que dependem dos valores e paradigmas entre os quais se desenvolveu e pautou o seu crescimento. Tais necessidades são tão importantes que mesmo quem nasceu e cresceu em outro ambiente diferente do dos seus ancestrais, sente um tipo de nostalgia que uma psicanálise pode dizer que se trata de um calo na alma, algo que não chega da doer, mas que se faz presente, lembrando um hábito de vida que marcou indelevelmente o indivíduo que, de alguma forma, sente sua falta.

A história conta também, que, ao longo do seu acontecer, os povos interagem entre si, por meio do comércio, relações diplomáticas e, às vezes,  por atitudes beligerantes. Na antiguidade eram movidos por amor ao próprio modus vivendi, que, intrinsecamente, cada indivíduo acreditava que o seu fosse o melhor de todos, ou pior ainda, que o seu seria o único válido e que todas as outras maneiras de ver a vida seriam falsas. Da maior ou menor intensidade desse sentimento humano dependia o relacionamento entre os povos. Os que se sentiam mais fortes, eram impelidos a dominar belicosamente os considerados ignorantes e fracos a seu redor, enquanto impunham seus valores e culturas sobre os dominados, que debatiam o quanto podiam para defender seu território e a liberdade de viver segundo  seus próprios critérios.

 A observação de cada etapa do tempo linear da história faz notar que os tipos de comportamento dos povos em relação aos outros só variam pelos tipos de armas usadas. Os sentimentos que os impelem são sempre os mesmos: o do mais forte querendo dominar e ampliar sua área de conforto para fortalecer suas características e a do  agredido querendo se defender para continuar a existir. Continua, até hoje, o velho instinto de autopreservação natural, que nos seres humanos é mais abrangente do que nos outros animais. 

Quanto mais o tempo passa mais evolução acontece e as armas vão se tornando mais sofisticadas, mas continuam provocando dor e muito sofrimento aos seus alvos. Também, os seres humanos foram, aos poucos, descobrindo que o que os movia belicosamente era o conjunto de valores invisíveis que  tinham em comum, o que fazia deles um povo. Valores que só a alma humana pode avaliar.

Assim, as guerras foram acontecendo por motivos claramente espirituais, os religiosos, os mesmos que defendiam os humanos da própria violência, os que lhes davam a transcendência do invisível, os que os tornavam melhores aos próprios olhos: os valores que condenam a violência e proíbem matar porque consideram a vida sagrada.

 Nesse ponto da história, formado de um longo período, surge a esquizofrenia, que dissocia o pensamento e o sentimento da ação praticada. Quando o amor aos valores mais sublimes impele os humanos à guerra. 

As guerras religiosas são as mais humanas, quando o instinto de sobrevivência se torna forte e impulsiona os indivíduos que formam um povo  a atacar a quem os deseja destruir, para, pelo menos, morrer lutando, honradamente por algo que valha mais do que a vida biológica. 

 Essas premissas são necessárias para entender os habitantes da Espanha, que no século IX, vendo sua terra invadida e dominada pelos mouros islâmicos, que além de entrar nas suas igrejas e catedrais à cavalo, profanando seus lugares sagrados, exigiam um tributo de cem donzelas dos habitantes do lugar.  Diante da agressão e ofensa ao que tinham de mais sagrado, os espanhóis invocaram o auxílio de um apóstolo de Jesus Cristo, São Tiago, cujos restos mortais haviam sido descobertos na  sua terra anos antes. A tradição  diz que o santo teria aparecido em batalha, num cavalo branco, com uma espada na mão incentivando  os cristãos à luta, vencida na famosa batalha de Clavijo, a partir da qual os invasores foram expulsos. Desde então surgiram as imagens de "São Tiago Matamoros"

 Atualmente, quem vai à Compostela e vê a grande imagem do Santo, sobre o cavalo, a atingir pessoas com golpes de lança, fica no mínimo assombrado com a violência e incoerência da cena, e é capaz  de imaginar coisas horríveis acerca dos cristãos antigos e sua fé. Mas, quem procura tecer a narrativa da vida com a linha do tempo, pode compreender o que sentem os protagonistas das violentas cenas de guerras que acontecem hoje no Oriente Médio entre judeus e islâmicos,  no Iraque, na Síria, e redondezas, assim como em vários lugares do mundo onde acontecem atos de terrorismo. Os cristãos, devotos e São Tiago, por sua vez, agiam da mesma maneira, nas devidas condições: movidos pelo sentimento de ameaça da perda de algo mais valoroso que a vida biológica. 

O escritor inglês, G. K. Chesterton define bem esse sentimento tão humano  que se mantém intacto ao longo de décadas, séculos e milênios, por mais que queiram dissimulá-lo ou lhe dar outras conotações: “O verdadeiro soldado luta não por ódio ao que tem pela frente, mas por amor ao que tem por detrás.”

Enquanto as guerras e lutas forem pelo sagrado, ainda há esperança para a humanidade. Quer dizer que ainda há algo, imensurável por meios materiais, por que vale a pena lutar. Pior que  tais guerras, é a sensação falsa de conforto e prazer difundida por quem deseja dominar mentes corações pela mera sensação do próprio poder;  por esse modo, a humanidade toda estaria já como os habitantes da "Matrix"…

Giselle Neves Moreira de Aguiar

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