sábado, 30 de novembro de 2013

O Esperto



Deixando o limiar dos gabinetes onde se manipulam as conveniências políticas da nova ordem, da direita ou da esquerda, encontramos hoje nas ruas, nas esquinas, nas casas, um difuso maquiavelismo, espécie de barbaria a varejo, elevada à categoria de suprema virtude social. O cidadão de nossos dias gaba-se de ser esperto. É verdade que tudo conduz a esse resultado, pois a vida das cidades vai se tornando, dia a dia, mais intrincada e problemática, e portanto mais selvagem, do que a vida dos selvagens. A conquista de um lugar no bonde tem qualquer coisa da abordagem de um junco por piratas malaios; a compra de um pão requer astúcia do caçador.

Já vai longe, esbatido numa lembrança quase irreal, o tempo em que um homem, andando na cidade em compras ou boêmia, tirava o relógio do bolso e dizia aos amigos, com simplicidade, essa frase  prodigiosa: “Vou para casa.” E ia. Ia para casa com o espírito livre; ia andando com plenos direitos à distração e ao sonho, sentindo-se legítimo herdeiro de um imenso patrimônio que, entre outras maravilhas, constava de bondes dóceis e padarias fartas. 

Hoje, tudo se arma em problema; e é nisso, exatamente nisso, que consiste a  selvageria. O selvagem é selvagem porque não tem o espírito livre. O civilizado é civilizado porque não sente a presença e os entrechoques da maquinaria que move a cidade. O selvagem é selvagem porque sua maior virtude é a astucia. O civilizado é civilizado na medida em que pode manter uma candura municipal. É lícito dizer, portanto, que o mundo se torna bárbaro, quando em política, na vida das ruas, e no interior das casas, reina um imperativo de tecnicalidades, aceitas e glorificadas, para todos os atos simples que o homem já havia superado. O selvagem é o técnico por excelência; o selvagem é o mais tecnológico e tecnocrático dos homens. Se é rústica a sua engenharia, rigorosamente técnica spengleriana  é a sua concepção tática da vida.

A lei supera a esperteza e o amor supera a lei; e tanto na lei como no amor a base é o senso de reciprocidade e reconhecimento do outro enfaticamente exaltados até o propósito do sacrifício. O assassino e o ditador são criminosos, cada um em seu gênero, porque negam a reciprocidade, rompem um pacto, e julgam que um ímpeto de suas vontades pode ser uma lei, ou um decreto-lei, dentro do mundo dos homens. Mas o ditador  é pior do que o assassino, já por causa da impunidade em que se instala. já pelo próprio resultado material que se traduz, mais cedo ou mais tarde, não em um cadáver esfaqueado que uma ronda da madrugada descobre num ângulo escuro da cidade , mas em milhões de cadáveres esqueléticos que o lápis da estatística num gráfico.

É difícil determinar com precisão a relação de causa e efeito entre a esperteza política que triunfa na ditadura e a esperteza generalizada do povo. Parece-me que o fenômeno progride por meio de avanços alternados, ora de um lado, ora do outro, até o dia em que a atmosfera popular de esperteza, isto é, de desmoralização, se transforma num apelo, numa invocação, num imprecatório apetite de tirania. Nasce então o mágico, não menos responsável, porém a mais explicável. E ao cabo de uma dezena de anos agoniza a nação.

A legislação de uma sociedade tem uma dura contingência: ninguém pode alegar ignorância da lei. Todo mundo sabe que não seria possível legislar deixando para as mais simples infrações essa escapatória que, por fim, certamente atingiria os mais graves delitos. Mas também todo mundo sabe que quase todo o mundo ignora o conteúdo dos códigos. Não somente o homem simples, mas o próprio civilizado será mais civilizado na medida em que ignorar a lei e nela viver com simplicidade e desembaraço. Entre os poucos feitos gloriosos que lego a meus filhos, e de que me gabo, está o ter sido um dia preso na passagem de uma fronteira por falta de passaportes, e estão as miúdas infrações em repetidamente  caí por uma incapacidade irremediável de compreender os caprichos de minha prefeitura, consignados em misteriosos papéis cobertos de caracteres ilegíveis e de iluminuras com monstros aquáticos.

Na base de uma legislação há um binômio indispensável: de um lado, a lei deve ter a medida do homem, deve estar impregnada do espírito que mora nos simples e antigos instintos populares: de outro lado, o povo que a recebe deve possuir, além desse vivo instinto, a corajosa disposição de aceitar a dureza da lei em nome do bem comum. Quando falta um desses elementos começa a corrida para um reajustamento que se torna cada vez mais difícil, pois onde perdem a força os mandamentos e a noção do bem comum, debalde tentarão os técnicos  interpolar minuciosos artigos para apertar as malhas da lei. O abismo se torna cada vez maior e o cidadão, perdendo a inocência cívica, tende para o esperto, e dessa tendência, como numa incubação, surge o triste herói dessa triste cidade: o mais esperto. E quando numa tarde embandeirada, entre fanfarras e discursos, o pagé astuto toma conta do poder, podemos dizer que está partido aquele fio estendido entre as colinas do ontem e as invisíveis montanhas do amanhã. E podemos marcar, com a precisão dos cálculos de eclipse, as datas da fome, da desolação e da desmoralização.

A esperteza é feia, é ignóbil, mas é sobretudo estéril; fecunda é a inocência. Fecunda é a fidelidade. Os homens de nossos dias espezinham a inocência e a fidelidade. E perdem a memória. E tornam-se espertos. O esperto é o homem de longa malícia e curta memória; seus impulsos são breves como um piscar de olho; suas reacões são elementares, as glandulares, de que são capazes os ratos.

Gustavo Corção, trecho do livro:
Três Alqueires e uma vaca - Editora Agir -  Rio de Janeiro - sexta edição - 1961 -

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