sábado, 8 de setembro de 2012

Um bom parceiro


        
  Parte do livro: Três alqueires e uma vaca
                           de Gustavo Corção 
 6ª edição – Editora Agir -  Rio de janeiro 1961 -

           
                Uma das grandes alegrias que nos é dada neste mundo tanta vezes inóspito e doido, é o encontro de um bom parceiro de ideias.
           
              Talvez seja esta a razão de existirem a bisca (um jogo de baralho) e o xadrez: o homem precisa viver com outro homem sob a mesma regra. Dessa necessidade fundamental resultam os cassinos e os mosteiros, pois o falso e o genuíno se encontram em torno das mesmas necessidades.
           
              O homem precisa de uma lei, ainda que seja para logo depois a ultrapassar. Forma necessários o Levítico, o Decálogo, e todos os livros  e preceitos para que Santo Agostinho pudesse promulgar a terrível anarquia cristã: "Ama e faze o que quiseres."O homem precisa de uma lei para superá-la; de uma regra para não sentir sua prisão; de uma clausura para se libertar.
           
            Por isso gostamos do jogo e temos necessidades de uma regra de jogo. O que todos procuram nos mosteiros e nas casas de negócio é um lucro. Varia a natureza, mas há uma só coisa que não varia: a ideia de que só há lucro, o verdadeiro, adequado à natureza do homem, rezando ou vendendo gravatas, quando foram cumpridas certas regras. O lucro é a vitória sobre os limites, conquistada dentro dos próprios limites. Com isso eu afirmo a realidade moral do homem, e penso explicar sua propensão, às vezes excessiva e imoral, para os jogos de azar.
           
         O estabelecimento das regras, que perduram enquanto dura o jogo tem uma importância particularmente dramática na fase inicial. Nesse momento as regras são princípios ou juramentos, sendo cuidadosamente estipuladas onde o jogo é liso. No duelo os padrinhos verificam a igualdade das espadas e examinam escrupulosamente  se restam possibilidades que acordo que afaste os parceiros do campo de combate; no casamento, se as há de desacordo que os afaste também desse jogo sem fim, onde iguais são as regras e tão desiguais as armas.
           
             Há porém um jogo desconcertante, um jogo de regras difíceis e escondidas, cujo pacto inicial remonta a gerações. Refiro-me a essa coisa trivial e cotidiana que é a troca de ideias. Pensava nisso quando disse, e agora repito, que uma das grandes alegrias que nos pode ser dada é o encontro de um bom parceiro de ideias. Não basta a concordância sobre um certo número de assuntos. Não basta mesmo que dois indivíduos partilhem o mesmo credo.
           
          Ainda que sejam ambos católicos, ligados pela mesma Fé e no mesmo Pão, chocam-se na hora de tocar ideias. E nesses casos os choques são maiores e mais dolorosos; mas, ainda bons. Pior do que o choque é o desencontro, que é uma falsa conciliação.
           
       A divisão, mesmo dentro da Igreja, não é um mal em si, como parecem supor os espíritos largos a que já me referi e que se caracterizam pela falta de pugnacidade. Invocam eles a universalidade da Igreja e o pacifismo dos santos para impedir os choque saudáveis e necessários, que separam os Beneditinos dos Dominicanos, ou Jesuítas dos Franciscanos.
          
         A escolha, porém, é um ato violento; e se todos ouvissem os conciliadores que falam em unificação, ninguém escolheria Santo Inácio ou São Bento, mas ficaria a meia distância dos dois votos, imaginando um hábito intermediário e uma regra mista.
           
         A divisão, em si, não é má; de outro modo o Apóstolo não diria que o homem casado é um dividido, e que o matrimônio é um grande  sacramento. O que é mau e péssimo é a trapaça. A desobediência às regras do jogo. Porque então não há mais troca de ideias opostas que sejam, mas troca de golpes escusos, em busca do mau lucro e da defeituosa vitória em que a verdade é ultrajada. E, se grande é a alegria causada pelo encontro de um bom parceiro de ideias, grande também são a tristeza e o nojo causados pelo encontro de um parceiro que marca as cartas, ainda que seja com o sinal da cruz.
          
       Chesterton é um bom parceiro. Para mim, quando o encontrei, mais do que um grande autor, ele significou a inesperada valorização de uma antiga coroa de ideias, abandonada como um chapéu velho e fora de moda  de que agente se envergonha. O que em mim havia de verdadeiro, e de que me envergonhava – o simples amor pela família, o simplíssimo amor pela simplicidade, o gosto pelo riso, a preferência do claro sobre o escuro, o bom-senso, o bom-humor – aparecia anunciado por esse supervivo corretor, numa alta imprevista
           
    Veja bem o leitor que não estou me gabando de aproximações literárias, mas de aproximações humanas. A afinidade de ideias é uma semelhança e não uma igualdade; equipara os ângulos mas ressalva as proporções. Encontrei-me a mim mesmo em Chesterton, porque as mais simples e triviais ideias que para mim pareciam relíquias de família, desprezíveis nas altas esferas da cultura, eram suas ideias mestras, e eram realmente relíquias de família. E, sobretudo, eram ideias regeneradoras e fecundas. Faça o leitor a mesma experiência. Leia Chesterton; jogue com ele esse melhor dos jogos, em que as ideias são atiradas de campo para campo, e em que o lucro pode perfeitamente ser a recuperação do tempo perdido que Proust em quatorze volumes, não encontrou.


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