Parte
do livro: Três alqueires e uma vaca
de Gustavo Corção
6ª edição – Editora Agir - Rio de janeiro 1961 -
Uma das grandes alegrias que nos é dada
neste mundo tanta vezes inóspito e doido, é o encontro de um bom parceiro de
ideias.
Talvez seja esta a razão de existirem
a bisca (um jogo de baralho) e o xadrez: o homem precisa viver com outro homem sob
a mesma regra. Dessa necessidade fundamental resultam os cassinos e os
mosteiros, pois o falso e o genuíno se encontram em torno das mesmas
necessidades.
O homem precisa de uma lei, ainda que
seja para logo depois a ultrapassar. Forma necessários o Levítico, o Decálogo,
e todos os livros e preceitos para que Santo
Agostinho pudesse promulgar a terrível anarquia cristã: "Ama e faze o que
quiseres."O homem precisa de uma lei para superá-la; de uma regra para não
sentir sua prisão; de uma clausura para se libertar.
Por
isso gostamos do jogo e temos necessidades de uma regra de jogo. O que todos
procuram nos mosteiros e nas casas de negócio é um lucro. Varia a natureza, mas
há uma só coisa que não varia: a ideia de que só há lucro, o verdadeiro, adequado
à natureza do homem, rezando ou vendendo gravatas, quando foram cumpridas
certas regras. O lucro é a vitória sobre os limites, conquistada dentro dos próprios
limites. Com isso eu afirmo a realidade moral do homem, e penso explicar sua
propensão, às vezes excessiva e imoral, para os jogos de azar.
O
estabelecimento das regras, que perduram enquanto dura o jogo tem uma importância
particularmente dramática na fase inicial. Nesse momento as regras são
princípios ou juramentos, sendo cuidadosamente estipuladas onde o jogo é liso. No
duelo os padrinhos verificam a igualdade das espadas e examinam escrupulosamente se restam possibilidades que acordo que
afaste os parceiros do campo de combate; no casamento, se as há de desacordo
que os afaste também desse jogo sem fim, onde iguais são as regras e tão desiguais
as armas.
Há
porém um jogo desconcertante, um jogo de regras difíceis e escondidas, cujo
pacto inicial remonta a gerações. Refiro-me a essa coisa trivial e cotidiana
que é a troca de ideias. Pensava nisso quando disse, e agora repito, que uma
das grandes alegrias que nos pode ser dada é o encontro de um bom parceiro de ideias.
Não basta a concordância sobre um certo número de assuntos. Não basta mesmo que
dois indivíduos partilhem o mesmo credo.
Ainda
que sejam ambos católicos, ligados pela mesma Fé e no mesmo Pão, chocam-se na
hora de tocar ideias. E nesses casos os choques são maiores e mais dolorosos;
mas, ainda bons. Pior do que o choque é o desencontro, que é uma falsa conciliação.
A divisão, mesmo dentro da Igreja, não é um
mal em si, como parecem supor os espíritos largos a que já me referi e que se
caracterizam pela falta de pugnacidade. Invocam eles a universalidade da Igreja
e o pacifismo dos santos para impedir os choque saudáveis e necessários, que
separam os Beneditinos dos Dominicanos, ou Jesuítas dos Franciscanos.
A
escolha, porém, é um ato violento; e se todos ouvissem os conciliadores que falam
em unificação, ninguém escolheria Santo Inácio ou São Bento, mas ficaria a meia
distância dos dois votos, imaginando um hábito intermediário e uma regra mista.
A divisão, em si, não é má; de outro
modo o Apóstolo não diria que o homem casado é um dividido, e que o matrimônio
é um grande sacramento. O que é mau e péssimo é a trapaça. A
desobediência às regras do jogo. Porque então não há mais troca de ideias opostas
que sejam, mas troca de golpes escusos, em busca do mau lucro e da defeituosa
vitória em que a verdade é ultrajada. E, se grande é a alegria causada pelo
encontro de um bom parceiro de ideias, grande também são a tristeza e o nojo
causados pelo encontro de um parceiro que marca as cartas, ainda que seja com o
sinal da cruz.
Chesterton
é um bom parceiro. Para mim, quando o encontrei, mais do que um grande autor,
ele significou a inesperada valorização de uma antiga coroa de ideias,
abandonada como um chapéu velho e fora de moda
de que agente se envergonha. O
que em mim havia de verdadeiro, e de que me envergonhava – o simples amor pela
família, o simplíssimo amor pela simplicidade, o gosto pelo riso, a preferência
do claro sobre o escuro, o bom-senso, o bom-humor – aparecia anunciado por esse
supervivo corretor, numa alta imprevista
Veja
bem o leitor que não estou me gabando de aproximações literárias, mas de
aproximações humanas. A afinidade de ideias é uma semelhança e não uma
igualdade; equipara os ângulos mas ressalva as proporções. Encontrei-me a mim mesmo em Chesterton, porque as mais simples e
triviais ideias que para mim pareciam relíquias de família, desprezíveis nas
altas esferas da cultura, eram suas ideias mestras, e eram realmente relíquias
de família. E, sobretudo, eram ideias regeneradoras e fecundas. Faça o
leitor a mesma experiência. Leia Chesterton; jogue com ele esse melhor dos
jogos, em que as ideias são atiradas de campo para campo, e em que o lucro pode perfeitamente ser a recuperação do tempo perdido
que Proust em quatorze volumes, não encontrou.
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