terça-feira, 4 de setembro de 2012

Direito masculino


Neste artigo, João Pereira Coutinho conta sobre pesquisador Português Jorge Martins Ribeiro que reivindica para os homens o direito de rejeitar a paternidade, evocando o direito da mulher ( em seu país) de realizar o aborto.

O texto ilustra com o exemplo,  o perigo que se corre ao abandonando
os preceitos sagrados  da espécie humana para correr atrás da 
satisfação pessoal. Onde iremos parar?

"Eis, no fundo, a beleza da "autonomia" progressista: todos sabemos 
como ela começa; ninguém sabe como ela acaba." 


Filhos da mãe

Por : João Pereira Coutinho, publicado no Jornal "Folha de São Paulo, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/1143954-filhos-da-mae.shtml
                  

Aborto. A minha semana foi dominada por ele. Nos Estados Unidos, o republicano Todd Akin fez estragos na campanha de Mitt Romney com uma afirmação miserável sobre o tema: quando há violação, o corpo da mulher tem maneiras de resolver isso, rejeitando a gravidez.

A miséria da frase não está no delírio acientífico do homem, nem sequer na sua recusa do aborto em casos de violação --uma posição tradicionalista, sim, que é possível entender (não por mim) e até respeitar (idem).

A verdadeira miséria está na defesa explícita de que há violações e violações. Se a violação é verdadeira, o corpo da mulher é uma espécie de nave espacial que se desvia dos meteoritos, impedindo que o espermatozoide faça a sua aterragem triunfal em solo ovular.

Se, pelo contrário, a violação é ambígua, ou "amigável", como sacrificar a vida de um inocente?Sobretudo quando esse inocente é o produto de uma violação-que-não-é-bem-uma-violação?

Já escrevi nesta Folha. Repito: sou contra a liberalização do aborto, exceto quando está em causa a saúde física e psíquica da mãe.E imagino que uma mulher violada --a sério ou a brincar-- não fica propriamente no seu melhor estado anímico. As palavras de Todd Akin são, por isso, duplamente aberrantes.

Mas o aborto, e a minha semana a pensar no assunto, não veio dos Estados Unidos. Veio de Portugal. Na imprensa lusitana, encontro notícia séria que merece reflexão séria: um pesquisador português, Jorge Martins Ribeiro, escreveu um estudo universitário sobre a paternidade.

Melhor: defendendo a possibilidade de um homem não reconhecer a paternidade de um filho nascido contra a sua vontade. O pesquisador português baseia-se na mais pura igualdade entre gêneros. E invoca a liberalização do aborto no país (desde 2007) em socorro das suas teses: se, em Portugal, a mulher pode decidir abortar até as dez semanas de gestação, independentemente da posição do homem sobre o assunto, por que motivo o homem não pode recusar a paternidade de uma criança?

O raciocínio de Martins Ribeiro é exemplar --e exemplar porque parte da mesma noção de "autonomia" que está no centro das discussões progressistas sobre 
o aborto.

É a mulher grávida quem decide o que fazer com a criança. Sempre. A opinião  do homem; os seus interesses; o desejo (ou não) de ser pai --tudo isso tem importância, digamos, conjugal ou sentimental.Mas nada disso determina o fim do processo. Porque a "autonomia" da mulher é sempre soberana.

Nenhum homem pode obrigar uma mulher a abortar.
 No esquema geral das coisas, o homem não passa de um doador de esperma que, depois do serviço, é atirado para as bordas do prato, assistindo a um filme onde ele será apenas ator coadjuvante.

Como? Perfilhando (obrigatoriamente) a criança e sustentando-a, caso a mãe decida tê-la.

O pesquisador Jorge Martins Ribeiro, com impressionante sensibilidade paritária, inverte as premissas tradicionais do debate e conclui: se um homem não pode obrigar a mulher a abortar, não pode também ser obrigado pela mulher a perfilhar uma criança que ele não desejou.

E mais: nem a autoridade do Estado pode invadir essa esfera de "autonomia" (masculina). O Estado não pode determinar que uma mulher aborte uma criança.

Como pode desencadear uma averiguação oficiosa de paternidade? 
Se o pai não quer ser pai, o filho será, literalmente, filho da mãe.

Claro que, no meio do debate, algumas consciências progressistas acabarão 
por apelar para "os superiores interesses da criança".

Curioso: quando é para abortar, não há "superiores interesses da criança"; quando o homem ameaça fazer as malas, a criança passa a ter "superiores interesses".

Nada disso perturba o raciocínio do nosso pesquisador. "Superiores interesses da criança"?

Diz ele: um sistema que já acomoda o aborto livre até as dez semanas pode perfeitamente conviver com filhos sem atribuição da filiação paterna.

Eis, no fundo, a beleza da "autonomia" progressista: todos sabemos 
como ela começa; ninguém sabe como ela acaba.

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" ( editora Record). Escreve às terças-feiras na versão impressa do caderno Ilustrada do jornal "Folha de São Paulo", e a cada duas semanas nos site do jornal.


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