terça-feira, 10 de maio de 2011

Cidadela



Esta aldeia é realmente radiosa. É na verdade patética esta casa de aldeia. Mas, se a nova geração se ocupa das casas que apenas conhece pelo uso, que fará nesse deserto? Se, para proporcionares aos teus herdeiros a sensibilidade a um instrumento de cordas, precisas lhes ensinar a arte da música, para que eles sejam homens e experimentem sentimentos de homens, também precisas ensiná-los a ler, sob a dispersão das coisas, os rostos da tua casa, da tua propriedade, do teu império.
         
         Na falta disso, a nova geração acampará como bárbaros na cidade que tiver tomado. E que alegria de bárbaros tirariam eles dos teus tesouros?Nem saberão servir-se deles, por não terem a chave da tua linguagem.
        
        Para aqueles que emigraram para a morte, essa aldeia era como uma harpa. Todas as coisas tinham o seu significado: árvores, fontes, casas. E cada árvore com a sua história, diferente da outras árvores. E cada casa com os seus costumes, diferente das outras casas. E cada muro diferente dos outros muros, por causa dos seus segredos. Quando caminhas, vais compondo o teu passeio como uma música, extraindo o almejado som de cada um dos passos. Mas o bárbaro acampado não sabe fazer cantar a tua aldeia. Aborrece-o essa proibição de penetrar nas coisas e acabam por te desmoronar as paredes e dispersar os objetos. Por vingança contra um instrumento de que não se sabe servir, ateia o incêndio, que ao menos lhe paga com um pouco de luz. Depois desanima e começa a bocejar. Para a luz ser bela, é preciso conhecer até o que se queima. Aí tens a chama do círio que acendes ao teu Deus. Mas ao bárbaro, nem a chama da tua casa dirá coisa alguma, pois não é chama do sacrifício.
        
          A imagem da geração instalada como intrusa na casa da outra não me saía da cabeça. No meu império, tem de haver ritos: são eles que obrigam o homem a transmitir ou a receber a herança. Tenho necessidade de habitantes no meu país, não de campistas, vindos parte alguma.
        
         Por isso não te dispensarei das longas cerimônias. Elas permitem-me voltar a coser os rasgões do meu povo, para que nada se perca da herança. A árvore, é certo, não se preocupa com as sementes. O vento às vezes as arranca e as leva consigo. Deixá-lo! O inseto não se preocupa com os ovos. O sol os chocará. Tudo o que eles possuem têm-no na carne e transmite-se com a carne.
         
         Mas que seria de ti, se ninguém te pegasse pela mão para te mostrar as provisões de um mel que não é das coisas, mas do sentido das coisas? Visíveis são, é certo, os caracteres do livro. Mas para te fazer as chaves das dádivas do poema, tenho de te castigar.
         
        Quero que os funerais sejam solenes. É que não é só questão de enterrar um corpo na terra, mas de recolher intato, de uma urna quebrada, o patrimônio de que o teu morto foi depositário. É difícil salvar tudo. Os mortos levam longo tempo a recolher. Precisas chorá-los durante muito tempo e meditar na sua existência e festejar os seus aniversários. Precisas te voltar muitas vezes, para observar se não te esqueces de qualquer coisa.
         
         Aí tens também os casamentos, preparam as crepitações do nascimento. A casa que vos encerra torna-se celeiro e granja e armazém. Quem é capaz de te dizer o que ela contém? A vossa arte de amar, a vossa arte de rir, a vossa arte de saborear o poema, a vossa arte de cinzelar a prata, a vossa arte de chorar e refletir, tendes de reunir tudo isso para o transmitirdes. Que o vosso amor seja navio de carga capaz de franquear o abismo de uma geração para outra, e não concubinato pela partilha futura de provisões vãs.
          Os ritos do nascimento também são essenciais. Eles permitem costurar o rasgão.
         
          Pela mesma razão, exijo cerimônias quando tu te casas, quando dás à luz, quando morres, quando te separas, quando voltas, quando começas a construir, quando começas a habitar, quando enceleiras as tuas colheitas, quando dás inicio às tuas vindimas, quando declaras guerra, ou celebras a paz.
         
        

         Por isso exijo que eduque seus filhos. Só assim eles virão a parecer-se contigo. Poderia um sargento que só sabe o que vem no manual, transmitir-lhe uma herança? Embora outros que não tu possam depositar nele a tua bagagem de conhecimentos, o teu pequeno bazar de ideias, se ele for separado de ti perder-se-á tudo o que não é enunciável nem se encontra no manual. Construirás os filhos à tua imagem, não vão eles mais tarde arrastar-se, sem alegria, numa pátria que será para eles acampamento vazio e caixa-forte de tesouros que deixarão apodrecer, por não conhecerem as chaves.
           
                                          -Antoine de Saint-Exupéry -
        Cidadela, capítulo CLIII- Tradução de Ruy Bello- Editora Nova Fronteira

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